Sobre koans

Prefácio de “L’Élan pour passer la porte du Zen”, de Zhuhong — Éditions Accarias l’Originel

Aqui estamos na Europa, no despontar do século vinte e um, e muitas das questões que eu encontro no meu percurso enquanto professora Zen em muito se parecem com aquelas com que os meus veneráveis antecessores se depararam há séculos e séculos na Ásia: O que é esta “prática”? Quem a faz e porquê? Como? Quando? Onde? Quem sou eu?

Estas questões aparecem fraseadas de maneira diferente consoante a pessoa, o assunto é abordado de variados ângulos – Qual o significado desta prática? Com que fim? Porquê sentar e meditar? O que é “despertar”? – e as questões surgem em variadíssimas situações, tempos e lugares. Apesar da singularidade de cada situação e de eu responder de maneira diferente a cada uma delas, devo admitir ainda assim, como o fizeram os meus antecessores antes de mim, que estou constantemente a dizer a mesma coisa.

De facto aquilo a que chamamos “prática” é aliás muito simples: “meditação Zen” é apenas e só tomar um lugar no meio do que quer que se esteja a passar no meio deste preciso momento. Sentas-te cara a cara com o teu eu despido, aqui e agora. Assim, sentando-te cara a cara com todos os seres e coisas tal qual elas são, acordas do teu sono nublado para a experiência direta das alegrias e tristezas sem fim nesta vida fugaz que todos partilhamos.

Numa das imagens budistas clássicas o Buda é representado de pernas cruzadas com as costas da mão esquerda sobre o colo e as pontas dos dedos da mão direita pendentes, suavemente tocando o chão. Este “mudra” a tocar o solo diz tudo, perfeitamente: tudo o que nós precisamos está aqui; este preciso lugar onde nos sentamos é o solo do despertar.

Não tem nada que ver com budismo, Zen, monges, padres, túnicas, cerimónias, rituais, a cor da tua roupa ou o corte de cabelo, título, cargo ou entendimento. Tem tudo que ver com apenas sentar. Com o que quer que surja. No meio da tua vida. As pontas dos dedos suavemente tocando no solo. Ou na água de lavar os pratos.

Apesar de soar simples, simplesmente sentar e despertar não é tarefa fácil. Especialmente no nosso mundo moderno utilitário com a sua ênfase no “desenvolvimento pessoal”, repleto de preocupações materialistas e a veneração primordial para com uma explicação científica, gratificação instantânea e acumulação sem fim.

Porém, o que está no cerne destes problemas contemporâneos é a mesma questão que foi abordada há mais de 2.500 anos atrás por Shakyamuni o Buda: a origem dos nossos problemas é a crença confusa num falso “eu” ou “eu interior” que é de facto um artifício criado por nós. Tanto nesse tempo como agora, este entendimento ou despertar inclui a experiência da verdade primária do ser para além desse artifício. É aqui que os koans, o assunto deste livro, entram em cena. Da variedade de práticas, escolas e técnicas que foram criadas para ajudar os praticantes ao longo dos tempos, os koans continuam a ser uma ferramenta única. A sua utilização foi desenvolvida como um método na tradição Zen – ela própria entendida como um ensinamento “fora” dos textos formais ou sagrados, apontando diretamente para a verdadeira natureza da existência – para proporcionar uma experiência “súbita” das coisas como elas são, aqui mesmo, neste preciso momento.

Da perspectiva da nossa mente, habitualmente discriminatória, os koans são incompreensíveis. Na melhor das hipóteses podem até apresentar um paradoxo. Não há aqui espaço para uma resposta intelectual, resolução mental ou explicação coerente. O mesmo podia ser dito sobre um copo de água ou a guerra no Afeganistão – isto se estivermos dispostos a renunciar ao que habitualmente percebemos por “água”, “copo”, “guerra” ou “Afeganistão”, o que, de novo, não é tarefa fácil. Os koans são ferramentas que promovem a renúncia e que, através desse profundo questionamento, permitem uma experiência direta do que nós em seguida vimos a perceber que não é nem “questão” nem “resposta”.

A prática (ou estudo) dos koans assemelha-se à arte de traduzir de uma língua que conhecemos para outra que não conhecemos. Começamos pela língua que conhecemos – inglês ou francês, por exemplo – e identificamos o que quer que esteja à nossa frente nessa língua familiar. Depois, para traduzir para uma outra língua – uma que não saibamos, talvez Suaíli ou Uzbeque – devemos expandir a nossa noção que temos da dita coisa para além daquilo que “sabemos” dela. Temos de por de lado a palavra habitual que usamos para a definir – chapéu, amor, homem, tarde, eu – e experienciar a “coisa” tal como ela é, desprovida das nossas crenças sólidas, e liberta dos limites por nós impostos e ideias preconcebidas. Como não sabemos a língua para qual estamos a traduzir, estamos perante uma experiência plena, sem limites, daquilo que até então estava reduzido a apenas uma palavra, a um conceito insípido – chapéu, amor, homem, tarde, eu.

A prática dos koans não é mais misteriosa do que isto. Durante centenas de anos, toda uma parafernália de koans foi sendo reunida em belas coleções que são habitualmente tidas como requintados exemplos de literatura Zen. Foram estabelecidos sistemas de prática de koan, tendo sido feitas muitas traduções das variadas coleções em muitas línguas. A tradução feita neste livro, de lições do século dezassete na China, é um exemplo. Vemos como os estudantes de então, não diferentes dos de agora, expunham as suas questões e como os seus professores os guiavam. Milhões de estudantes Zen, de Este a Oeste, percorreram e continuam a percorrer esse caminho com a ajuda destas ferramentas, graças à compaixão perene daqueles que as transmitiram, geração após geração.

O koan Zen orientou praticantes através dos tempos para realidade de que a “prática” essencial não é mais do que sentarmo-nos cara a cara com o momento aqui à mão, mergulhando nas profundezas desconhecidas do cerne da vida de cada um. Cada momento é então visto como sendo um koan. Cada instante impossível de categorizar ou medir mas ainda assim transbordando com a riqueza, amor e compaixão inesgotáveis da vida.

Amy (Tu es cela) Hollowell

Montreuil, França

Toussaint, 2011