Numa tradicional história do Zen, um mestre levou os estudantes a uma clareira na floresta conhecida por ser uma zona com macacos selvagens. Pegou numa cabaça oca com um pequeno buraco e despejou lá para dentro arroz adocicado (iguaria que os macacos adoravam). Atou a cabaça a um pau e esperou com os seus alunos. Pouco tempo depois, aproximou-se um grande macaco, cheirou o arroz, enfiou a pata na cabaça e guinchou de frustração quando não conseguiu retirar a pata (agora um punho fechado cheio de arroz) pela abertura estreita. É então que se aproxima um leopardo e, ouvindo o macaco guinchar, decide comer o macaco como jantar.
– Larga o arroz… Corre! – gritaram os alunos, mas não serviu de nada, porque o macaco, na sua cobiça do arroz, recusou-se a largá-lo e, por conseguinte, foi apanhado e comido pelo leopardo.
– Qual foi a armadilha que matou o macaco? – perguntou o mestre.
– O arroz – disse um estudante.
– A cabaça – respondeu outro.
– Não – esclareceu o mestre. – A armadilha foi a ganância.
Pode parecer-nos ridículo que o macaco se recusasse a largar o arroz e por isso tenha morrido. Mas na verdade não é nada ridículo. É a história da nossa vida, como há cerca de duzentos anos expressou de forma tão eloquente o poeta Wordsworth num soneto: «Recebendo e gastando, desperdiçamos os nosso poderes.» E acrescenta: «Sórdido negócio!»
Podemos perguntar como chegámos aqui. Porque não somos generosos e solidários, apreciando as nossas vidas e a abundante beleza de cada momento?
No início de um recente retiro zen em Portugal, reuni as várias dezenas de participantes para os receber e passarmos em revista o horário e outras informações. Formámos um grande círculo com as cadeiras numa divisão que era uma espécie de varanda, coberta com um telhado de plástico e metal. Lá fora, chovia com intensidade. Enquanto eu estava a falar, a chuva começou a cair com mais e mais força, e o barulho com que bombardeava o telhado era ensurdecedor. Eu mal me conseguia ouvir, quanto mais as outras pessoas. Tentei levantar a voz até estar praticamente aos gritos, e acabei por pedir aos participantes que aproximassem mais as cadeiras. Mesmo assim, tive de falar muito alto para a minha voz não acabar abafada pelo barulho da chuva forte a bater em plástico e metal.
Enquanto isso acontecia, dei por mim a ficar aborrecida, depois frustrada e por fim irritada. A tempestade estava a arruinar-me aquela apresentação perfeita! Além disso, quem tivera a estúpida ideia de usar um material tão fraco para o telhado, que não só fazia a chuva ressoar, mas também deixava entrar água? Felizmente, quando percebi o que estava a fazer, em vez de me agarrar à tempestade que me ia na cabeça, larguei-a. Larguei como queria que a situação fosse e abri-me a como sempre fora, antes de eu acrescentar as minhas expectativas e desejos. Ao abrir o coração para acolher tudo tal como era, houve uma real sensação física de alívio, de paz. A chuva forte continuava a cair, mas a tempestade em mim diminuiu. Senti-me como se tivesse sido libertada, como se a chuva e o telhado e todos os participantes, também, tivessem sido libertados. O meu apego levara à ganância; o meu largar levara à generosidade.
Como disse Eihei Dogen, o mestre zen do século xiii, «larga as coisas, e as tuas mãos ficarão cheias». Quando cerramos os dedos em volta do que queremos, quer seja arroz adocicado ou os nossos planos de como queremos que as coisas sejam, é isso a ganância. Ao enfrentar um «falhanço» dos nossos planos, temos tendência para ficar zangados ou na defensiva, agressivos, críticos, com pena de nós mesmos ou armados em justiceiros. Podemos sentir frustração, vergonha, insatisfação e dor, e assim, afastamo-nos ou retemos, fechamos o coração para não sentirmos estas emoções desagradáveis ou as mostrarmos aos outros. Todo este comportamento é uma expressão da nossa ganância mais básica: apego a nós mesmos.
O apego a nós mesmos, como o Buda fez notar com perspicácia, vem do mais elementar dos nossos «planos», uma ilusória identidade própria que levamos a vida a tentar em vão construir, proteger e manter. Pensamos em nós mesmos como «alguém», um «ser fechado em si mesmo» separado e imutável, nas palavras do académico budista David Loy. Conduzimos as nossas vidas tentando manter uma ideia e uma imagem que construímos de um «eu» que, como Loy sugere, desconfiamos, lá bem no fundo, não ser real. E de facto não é. A realidade de quem «eu» sou não é nada o que «eu» penso que é. Em vez do conceito de um ser fechado em si mesmo, fixo, a que «eu» me apego com tanta força, «eu» sou na verdade uma parte fluida e singular de um todo interdependente, «uma manifestação de uma rede de relações que abrangem tudo», escreve Loy.
Quando não vemos isso, explica Loy, o nosso «sentido de nós mesmos» é compreensivelmente frágil e acabamos por temer a nossa própria «ausência de fundação», que vemos como uma «falta». Empenhamo-nos em vão em infindáveis tentativas para compensar esse sentimento de falta, que é equivalente a tentar encher um poço sem fundo. E isso explica porque nunca parece haver o suficiente do que seja o que for que usamos – amor, dinheiro, posses, estatuto, poder, fama – para tentar preencher o que na verdade não pode ser preenchido. Quanto mais a falta persiste, mais nós queremos mais, motivados pelo lucro e pelo ganho a todo o custo. Agarramo-nos cada vez com mais força, acumulando, roubando, explorando, abusando para conseguirmos o que queremos. E provocando interminável dano e sofrimento, a nós próprios e aos outros.
Há uma história contada pelos quakers sobre um agricultor que tinha um pedaço livre de terra. Ergueu uma placa em que se lia «Esta terra será dada a quem esteja verdadeiramente satisfeito». Um rico agricultor que passava por ali parou ao ver a placa e pensou com os seus botões: «Já que o nosso amigo quaker está tão disposto a livrar-se deste terreno, mais vale eu reclamá-lo para mim antes que alguém se antecipe.» Sou rico e tenho tudo do que preciso, por isso de certeza que me qualifico.
Foi até à porta e explicou ao que ia.
– E está verdadeiramente satisfeito? – perguntou o quaker?
– Sem dúvida, pois tenho tudo de que preciso – respondeu ele.
– Meu amigo – disse o quaker – se está satisfeito, para que quer o terreno?
«O interessante na ganância», faz notar o dalai-lama, «é que embora o motivo subjacente seja procurar satisfação, mesmo depois de conseguirmos o que queremos, não estamos satisfeitos. É este interminável e persistente desejo de mais que dá problemas. Por outro lado, se estamos verdadeiramente satisfeitos, não interessa se obtemos ou não o que queremos. Seja como for, continuamos satisfeitos.»
Então, como podemos estar «verdadeiramente satisfeitos»? Vivendo a nossa básica ausência de fundação e o inter-relacionamento de todos os seres e coisas. A nossa satisfação há-de encontrar-se em estar completamente aqui, agora mesmo, onde vemos que não temos nada para perder e nada para ganhar porque já está tudo aqui. De outro modo, tendemos a ficar mergulhados na ganância, a tentar agarrar o que não temos, a olhar para a frente ou para trás, cada um por «si» mesmo. Nesse ambiente carregado, não há espaço para a generosidade.
É a isto que na terminologia budista se chama o reino dos espíritos ávidos. Somos como espíritos, fantasmas a assombrar as nossas próprias vidas, sem noção da nossa verdadeira natureza, e, esfomeados por preenchimento e completude, rebuscando tudo à procura do que achamos que vai satisfazer a nossa insaciável fome. Mas enquanto andarmos à procura fora de nós mesmos por esse preenchimento em vez de vermos quem verdadeiramente somos, nunca nada vai ser suficiente.
Não é um panorama agradável, apesar de ser familiar. O nosso mundo de hoje é um mundo de extrema desigualdade. Nos próximos dez anos, 1 por cento da população mundial terá nas mãos dois terços da riqueza do mundo. Enormes multidões dos restantes 99 por cento sofrem de subnutrição, guerra e pobreza. Abusamos também da terra, do ar e dos oceanos, e exploramo-los. «A Terra oferece o suficiente para satisfazer as necessidades de todas as pessoas, mas não a ganância de todas as pessoas», observou Gandhi com acutilância.
Este comportamento não é surpreendente numa cultura em que, como Gordon Gekko disse de forma célebre no filme Wall Street, a ganância é boa. Tudo é visto de um ponto de vista materialista, utilitário: Que utilidade tem para mim? Vai encher o meu poço sem fundo e fazer-me sentir «real»? A ganância é valorizada (o dinheiro é deus) porque «declarou-se que a utilidade é o mais importante objectivo na vida – ou, para ser mais preciso, ganhar tanto dinheiro quanto possível», escreve o filósofo cultural Rob Riemen. Em semelhante contexto, uma canção ou um poema, caminhar na floresta ou meditar, não são «valorizados» porque não são essencialmente funcionais ou úteis. Elogia-se o apego a si mesmo – a cultura da celebridade, a veneração da beleza física e da riqueza material, a glorificação do «eu» no Facebook.
No nosso mundo moderno, a ganância institucionalizou-se, e até a generosidade é às vezes vista como utilitária, como um meio de polir a imagem pessoal ou acumular méritos de algum tipo. Bibliotecas, museus, galerias de arte, hospitais e outros edifícios exibem os nomes de ricos patronos e financiadores que ajudaram a pagá-los e querem em troca ter os seus nomes imortalizados. Semelhante «generosidade» não é de graça. No século vi, quando o imperador chinês perguntou ao mestre zen Bodhidharma que mérito lhe era devido por ter financiado a construção de templos e o apoio a mosteiros, Bodhidharma respondeu: mérito nenhum. Enquanto estivermos à procura de reconhecimento por um acto de generosidade, ainda estamos a acalentar a imagem centrada em si mesma que promove a ganância.
Nos ensinamentos budistas tradicionais, a ganância é um dos assim chamados três venenos que estão na origem das nossas dificuldades e sofrimentos (raiva e ignorância são os outros dois). Estes três venenos nascem do apego ao eu. E como acontece com todos os venenos, há um antídoto para cada um deles. Generosidade é o antídoto para a ganância (compaixão é o antídoto para a raiva e sabedoria é o antídoto para a ignorância).
O falecido cantor-autor-poeta Leonard Cohen, que morreu em 2016, ofereceu ao mundo uma demonstração particularmente iluminada deste antídoto nos anos finais da sua vida. Em 2005, descobriu-se que o gestor de longa data de Cohen desviara mais de 5 milhões de dólares das suas contas e vendera muitos dos direitos de publicação. Isto aconteceu enquanto Cohen estava a viver há quase dez anos como monge num mosteiro zen na Califórnia. Falido, com 74 anos, Cohen decidiu fazer o que as estrelas rock fazem para ganhar dinheiro: pela primeira vez em quinze anos, faria uma digressão. O seu agente, Robert Kory, disse à revista Billboard que de início Cohen se mostrara relutante em voltar ao palco. «Do seu ponto de vista, as digressões foram sempre um desastre», costumava ele dizer. «Ir para cima de um palco era a oportunidade para mil e uma humilhações», relembrou Kory.
Mas perante as complicadas consequências financeiras da traição e ganância do seu antigamente confiável associado, Cohen libertou-se dessa crença. Não se apegou ao desejo de manter uma qualquer imagem perfeita de si mesmo. Nem deixou que quaisquer ressentimentos ou raiva que pudesse sentir fossem um obstáculo. Num acto de profunda generosidade, abriu o coração, actuando por todo o mundo. Entre 2008 e 2010 e depois entre 2012 e 2013, deu-se por completo à música e ao público, oferecendo 387 espectáculos de incomensurável beleza, alegria e amor como nunca fizera numa carreira de cinquenta anos.
Era como se estivesse a manifestar para todos verem um exemplo vivo, que respira, que canta e que dança dos famosos versos da sua canção «Anthem»:
Toca os sinos que ainda tocam
Esquece a tua oferta perfeita
Todas as coisas têm uma racha
E é por aí que entra a luz
Deparando com a racha da ganância, Cohen largara o seu apego quanto a uma oferta perfeita e, com grande humildade e generosidade, na sua avançada idade, tocou os sinos que ainda tocavam, deixando entrar a brilhante e curativa luz da totalidade, para ele e para nós todos. Tal generosidade só poderia emergir de um lugar em que se largam planos e expectativas sobre o próprio e sobre o momento. Enquanto agarrar-se leva à pobreza e à ganância e a incontável sofrimento, largar produz generosidade e as incontáveis riquezas do amor.
A perfeitamente imperfeita actuação da poetisa e estrela rock Patti Smith na cerimónia em honra dos premiados com o Nobel em Dezembro de 2016 foi uma comovente ilustração disso mesmo.
Meses antes, fora convidada para actuar na cerimónia. A princípio, pensara cantar uma das suas próprias canções, mas em Outubro, quando foi anunciado que Bob Dylan ganhara o prémio para a literatura, Patti mudou de ideias, e decidiu que seria mais apropriado cantar uma canção de Bob Dylan. Escolheu de imediato «A Hard Rain’s a-Gonna Fall», canção que adorava desde a juventude. Ao longo das semanas seguintes, preparou-se para o acontecimento, ensaiando a canção, comprando um fato novo e aparando o cabelo antes de voar para Estocolmo. Dylan, entretanto, fez saber que não estaria presente.
No dia da cerimónia, a chuva matinal transformara-se em neve quando Patti Smith chegou à sala onde ia actuar. O ensaio com a Real Orquestra Filarmónica de Estocolmo correu bem, e ela aguardou no camarim privado pelo início da cerimónia. Estava pronta. Tudo estava pronto. Quando chegou por fim o momento da actuação, pôs-se em frente à orquestra, num balcão por sobre o grande salão. «Como num conto de fadas», lembraria ela mais tarde, «estava perante o rei e a rainha suecos e algumas das grandes mentes do mundo, armada com uma canção em que cada verso codificava a experiência e a resistência do poeta que os escreveu.»
Depois dos acordes iniciais da guitarra, começou a cantar, com segurança se bem que um pouco trémula. Mas depois da primeira estrofe, penosamente consciente da atmosfera refinada e das câmaras de televisão transmitindo a cerimónia para milhões de espectadores por todo o mundo, deixou-se invadir pelos nervos. As palavras não saíam. Ficou incapaz de continuar. A sua oferta perfeita fora-se.
Foi um momento enorme. Também a sua reacção foi enorme. Cobrindo o rosto, pediu desculpa, explicou que estava nervosa e pediu ao maestro se podiam começar do início a estrofe. O público aplaudiu. Dizer a verdade é generoso. Foi um momento verdadeiramente enorme. Recomeçou onde tinha ficado, hesitante, de início, mas continuando e entregando-se por completo à canção. Quando acabou, o público aplaudiu com entusiasmo. Contudo, Patti lembrou mais tarde que, ao voltar para o seu lugar, ainda sentia «o golpe humilhante do fracasso».
Felizmente, não se agarrou ao sentimento de humilhação e falhanço pessoal. Em vez disso, largara-o. Largara a imagem aprisionadora de um eu idealizado que cantaria na perfeição a canção de um dos seus ídolos e que seria elogiada por isso. Largara os seus planos. Ao reconhecer o seu «falhanço» em plena actuação e começando de novo, abrira com grande humildade o seu coração e oferecera-se e oferecera a canção ao mundo. Foi uma actuação notável pela sua pureza, sem nada acrescentado, sem nada retirado.
Como diz um koan do Zen, «É melhor não ter nada do que ter algo bom».
No dia seguinte, durante o pequeno-almoço no hotel, Patti Smith foi felicitada por alguns dos laureados com o Nobel. Disseram que tinham apreciado profundamente a sua actuação e a luta que manifestara de forma tão pública. Reflectia as suas próprias lutas, disseram, e as de todos os seres humanos. Isto, escreveu ela uns dias mais tarde, ajudou-a a compreender a natureza do seu trabalho como artista.
«Porque apresentamos o nosso trabalho? Porque actuamos?», escreveu. «É acima de tudo pelo entretenimento e pela transformação das pessoas. É tudo para elas. A canção não pedia nada. O criador da canção não pediu nada. Porque havíamos nós de pedir alguma coisa?»